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Resenha: Necrópole – Boris Pahor

Editora: Bertrand Brasil
Autor: Boris Pahor
ASIN: 9788528615821
Edição: 1
Número de páginas: 294
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos
Compre: Amazon

Uma obra-prima da literatura do Holocausto Quando o fluxo da memória começa a correr. e as lembranças voltam à tona com sua carga de dor e comoção. Campo de concentração de Natzweiler-Struthof. nos Vosges. Alemanha. O homem que. numa tarde de verão. chega com um grupo de turistas não é um visitante qualquer. mas Boris Pahor. um ex-prisioneiro que. depois de muitos anos. volta ao lugar onde esteve preso. O autobiográfico Necrópole traz as lembranças que surgem diante das barracas e do arame farpado transformados em museu e centro de visitação. Escrito numa linguagem crua que não faz concessões à autocomiseração. o livro marca por seu texto forte e. muitas vezes. violento. que descreve. em mínimos detalhes. atrocidades como a tortura de presos e a dissecação de cadáveres. Uma das características de Pahor é utilizar-se de parágrafos longos. que deixam o leitor sem ar. angustiado. como o próprio autor se sentia nos anos em que viveu no campo. Pahor. durante a Segunda Guerra Mundial. colaborou com a resistência antifascista eslovena e foi deportado para os campos de concentração nazistas. experiência que o marcou profundamente e da qual se encontram resquícios na maior parte da sua extremamente rica produção literária. Mais do que um escritor. uma lenda viva.

Minhas impressões

É fácil perceber que sou fascinado pela história da segunda guerra mundial, haja visto a quantidade de livros que li sobre, e a quantidade de resenhas.

Entenda fascínio como curiosidade, não como administração. Assim como muitos outros eu tento achar alguma razão ou explicação para o que aconteceu, pois não se trata somente da natureza humana. Não se trata só de medo de uma população em não obedecer seu líder…

Entendo que todo o histórico da primeira guerra, o assinado do tratado de Versalhes que responsabilizou a Alemanha por todos os custos da primeira guerra e tirou parte de seu território, a crise econômica do país, o carisma de Hitler e as propagandas de Goebbels e por fim todo o antissemitismos arraigado na população contra os judeus e outras nações culminaram em tudo que aconteceu. Porém ainda assim não há uma explicação concreta.

Seria de fato oportuno procurar a origem desta desumanização, pois as explicações econômicas e sociológicas não bastam; e tampouco a teoria das raças de Gumplowitz ou os livros de Friedrich von Gagern

Por esse motivo sempre busco livros que contenham a história do ponto de vista de quem realmente passou por tudo aquilo. Como tenho uma memória extremamente seletiva, livros de história, cheios de datas, acabam não me interessando muito. Justamente por esse fato, Necrópole de Boris Pahor me chamou tanto a atenção, e foi tão chocante quanto imaginei ser.

A cada palavra teria o receio de deixar escapar uma nota desafinada, porque da morte e do amor só podemos falar conosco mesmos ou com a pessoa amada, com a qual formamos uma coisa só. Nem a morte nem o amor tolera a presença de estranhos.

Se vocês em algum momento leram os livros ou as resenhas de Depois de Aushwitz e O Piloto de Hitler, sabem a diferença que existe entre o relato dos dois. Nesta obra acontece o mesmo, porém de uma forma mais penetrante. Chocante como eu disse anteriormente não seria a forma correta de descrever…

Pahor consegue descrever os horrores passados de uma forma tão, como posso dizer? De uma forma tácita, pois a forma que ele retrata suas memórias é quase poética e isso pra mim foi um tapa mais forte do que imagens ou relatos claros de violência.

… mesmo assim continuava a dizer-lhe que agira errado, que deveria ter lembrado o que diziam os nossos pais quando voltavam da frente de batalha de Isonzo: ‘Não pode ter medo da morte, porque, se tiver medo, então tropeça, e então a morte pula em cima de você; precisa permanecer lúcido, todos os seus gestos devem ser naturais.?’

Um fato que geralmente passa despercebido é que não somente judeus sofreram na segunda guerra. Ciganos, negros, homossexuais, pessoas de países inimigos da Alemanha, ou mesmo os não aliados também sofreram.

No caso de Pahor é pior ainda, pois sua nação estava sofrendo desde a primeira guerra mundial, quando Trieste é obrigada a abandonar sua língua materna e seus costumes e são forçadamente anexados à Itália em 1921.
Voltando um pouco para situá-los melhor. Trieste era uma cidade-estado que ficava entre a Itália e a Iuguslávia. Depois da primeira guerra, com a subida do poder do Facismo, Trieste e sua população que era mista de eslovenos, iuguslavos e italianos, foi forçada a abandonar toda sua cultura e seguir os costumes da Itália.

Seja como for, nisso somos parecidos com os judeus e os ciganos; nós também, como eles, através de toda a nossa história tivemos de lidar com o problema da assimilação.

Como é sabido, não vou citar datas, pois com certeza erraria, a Itália no início se mostrou aliada ao Nazismo, e como Pahor fazia parte de um grupo antifascista foi levado preso para um campo. Tempos depois a Itália “traiu” o movimento fazendo com que outros italianos fossem considerados criminosos e consequentemente levados para campos de concentração. Tudo isso para explicar como Pahor fora parar nesse meio.

… aquelas expressões de fraternidade só fossem filhas do ambiente em que eram proferidas; porque na igauldade final, diante da fome e das conzas, não era obviamente possível continuar preso a prerrogativas e privilégios até então defendidos com a maior obistinação. Por isso parecia-me descabido, depois de tantos anos de vida em comum nas mesmas ruas e nas mesmas costas, que meu concidadão representante da elite italiana falasse pela primeira vez com um toque de humanidade logo aqui, onde tudo que é humano estava sendo negado; era a igualdade dos nossos corpos condenados que tirava do caminho os empecilhos, e eu ficava com nojo só de pensar que o promotor do lançamento dessa nova irmandade fosse apenas o medo do forno.

Um fato que me chamou atenção foi a persistência de Pahor em fazer o bem mesmo na situação em que estava. Devido um problema em um dos dedos da mão, Pahor foi “liberado” do trabalho forçado nas minas e foi indicado para trabalhar na enfermaria, onde tentou ajudar o máximo de pessoas que podia. Nada comparado a Shindler que salvou centenas, mas dadas as circunstâncias, ele tentou aliviar pelo menos a dor de alguns. Pahor cita diversas passagens onde ele tenta ajudar os doentes pegando o mísero pedaço de pão duro de outro que morreu e dando a alguém que estava há dias sem comer. Conta também sobre médicos do campo se compadecendo e ajudando a salvar outros.

Como sempre na vida, mesmo num aperto como aquele é preciso ter as ideias bem claras, saber exatamente o que se quer e procurar alcançar a meta, apesar do delírio do pânico. Claro, não é fácil lutar num corre-corre confuso no qual o chispar das lanternas elétricas se alterna ao das malditas chicotadas, enquanto por toda parte há bocas gritando, prontas a cair em cima de você.

Surpreendentemente um desses atos de bondade vem de um soldado alemão que vê Pahor ajudar um doente que não consegue entrar no trem de carga e envia um copo de arroz para Pahor. Um copo de arroz! Veja que meu espanto aqui se dá justamente pela improbabilidade disso acontecer já que o que os prisioneiros “comiam” era uma sopa extremamente rala e um pedaço de pão duro.

O doutor Blaha conta que, em Dachau, peles humanas era penduradas como panos a secar. Eram usadas para se obter um couro muito fino, perfeito para calças de montar, pastas e carteiras, pantufas macias e encadernações de livros. Não era aconselhável, brinca o doutor Blaha, ter pele bonita.

Já do outro lado dessa história me chama muita atenção o fato dos Nazistas insistirem em manter cativos e humilhados tantos prisioneiros. Não se tratava mais só de trabalho forçado. Manter um campo, por mais que eles mal dessem comida ou tratamento, demandava muito trabalho para o exército, além de usar recursos que poderiam ser utilizados no front ou em outros lugares. Por isso não consigo entender essa obssessão em fazer o mal, em humilhar os prisioneiros. Só em Berlim haviam 645 campos dedicados exclusivamente para trabalhos forçados. Em toda a narrativa, em todas as situações vividas pelo autor, você enxerga o sofrimento desnecessário que eles passaram. Se realmente eles eram considerados inimigos do estado, bastava prendê-los e não fazer o que fizeram. Entendam que em nenhum momento aprovo o que aconteceu e sim tentando dar sentido ao ocorrido.

O mal, que aqui superava qualquer dimensão imaginável, já estava presente em mim havia muito tempo, como a sombra de um monstro à espreita. E agora chego muitas vezes a pensa que, devido justamente a essa minha união com o terror, no meu íntimo eu já não passava, naquela época, de uma insensível máquina de filmar, só capaz de registrar, sem participar.

Fugindo um pouco da obra e falando do ambiente que ela se passa e alguns fatos sobre o autor.

Muitas vezes esquecemos que os campos de concentração não existiam somente na Alemanha. A maior parte do tempo que Pahor ficou preso foi em um campo na França.

Pahor conseguiu sobreviver ao caos daqueles tempos e se tornou um autor internacionalmente conhecido por esta e outras obras que escreveu. Ele ainda vive e tem hoje 103 anos (segundo a Wikipedia). Ganhou diversos prêmios como por exemplo “Legion of Honour” pelo governo francês, “Cross of Honour for Science and Art”pelo governo Austríaco e foi nomeado para o prêmio Nobel de literatura pela Academia Eslovena de Ciências e Artes.

Como citei acima ele passou a maior parte cativo em um campo de concentração francês, mas a “trajetória” dele foi Natzweiler-Struthof, Dachau, Mittelbau-Dora, Harzungen, e finalmente Bergen-Belsen, onde foi libertado em 15 de abril de 1945. Você encontra as fotos respectivas abaixo.

De forma que a Europa saiu do pós-guerra, que poderia ter sido o período da sua completa e definitiva purificação, como uma inválida à qual alguém aplicou olhos de vidro para ela não assustar os bons cidadãos com suas olheiras vazias…

A minha alma revolta-se diante daqueles remendos brancos misturados com as tábuas enegrecidas, descoradas e gastas; nem tanto pela cor, pois sabia que o homem iria pintar as novas tábuas tornando-as iguais às antigas; acontece que eu simplesmente não podia tolerar aqueles pedaços de madeira tosca recém aplainada. Era o mesmo que alguém tentasse inocular células novas e vivas numa podridão morta, como se alguém enxertasse uma perna branca num montão de múmias enegrecidas e ressecadas. Eu era a favor da intangibilidade da danação. Pois é, agora já não consigo distinguir os pedaços acrescentados; o mal engoliu e destruiu as novas células, infectando-as com a podridão dos seus humores.

Enfim, o livro é impactante. Ele te afeta profundamente, de uma forma lenta e persistente. O ritmo de narração de Pahor te leva para dentro do campo e mostra situações que você não veria num livro de história que na maioria das vezes exaltam os “aliados” e esquecem de contar os horrores que aconteceram e os heróis internos. Pode parecer um assunto chato, mas é um assunto que tem de ser mantido vivo, pois a possibilidade de aparecer um novo Hitler é grande. Duvida? Dá uma escutada nos discursos do Donald Trump…

Portanto André, você está errado quando, no prefácio, pergunta ao leitor se não seria o caso de aniquilar a estirpe que gerou Nietzsche, Hitler e Himmler, além dos milhões de executores das suas ideias e das suas ordens. Está errado porque, sem se dar conta, sofre a influência do mal que o contagiou.

Até =]

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