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Resenha: Desonra – J. M. Coetzee

Editora: Companhia das Letras
Autor: J. M. Coetzee
ISBN: 9788535900804
Edição: 1
Número de páginas: 248
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos
Compre: Amazon

Sucesso de público e crítica – foi publicado em mais de vinte países e ganhou o Booker Prize, o mais importante prêmio literário da Inglaterra -, Desonra é considerado o melhor romance de J. M. Coetzee. O livro conta a história de David Lurie, um homem que cai em desgraça. Lurie é um professor de literatura que não sabe como conciliar sua formação humanista, seu desejo amoroso e as normas politicamente corretas da universidade onde dá aula. Mesmo sabendo do perigo, ele tem um caso com uma aluna. Acusado de abuso, é expulso da universidade e viaja para passar uns dias na propriedade rural da filha, Lucy.
No campo, esse homem atormentado toma contato com a brutalidade e o ressentimento da África do Sul pós-apartheid. Com personagens vivos, com um ritmo narrativo que magnetiza o leitor, Desonra investiga as relações entre as classes, os sexos, as raças, tratando dos choques entre um passado de exploração e um presente de acerto de contas, entre uma cultura humanista e uma situação social explosiva.

Minhas impressões

Ler Desonra é garantir por um bom tempo aquele sem-número de reflexões sobre processo histórico, questões que permeiam envelhecimento, sentido da vida, mediocridade e por aí vai dependendo apenas do perfil e momento vivido pelo leitor. A única certeza é a de que é uma história em que ficamos presos do início ao fim e simplesmente não conseguimos parar.

O ritmo em que a obra vai se descortinando também é interessante, temos momentos cruciais em que se espera reações radicais das personagens e incrivelmente não é o que acontece e, longe de ser decepcionante, vai moldando de maneira cadenciada a progressão da narrativa de forma a lembrarmos de Nelson Rodrigues com sua expressão “a vida como ela é”.

A história tem como cenário inicial a Cidade do Cabo, numa África do Sul com todos os resquícios e heranças de anos e anos de apartheid. Começamos sendo apresentados ao metódico e previsível professor universitário David Lurie, sabemos de sua rotina, suas críticas à universidade e pensamentos um tanto bizarros sobre a vida do homem na casa dos cincoenta anos. Aparentemente acomodado diante do imposto por sua trajetória, vive imerso em um cotidiano marcado, reflexo de seu distanciamento de tudo e todos sendo que sua única porção de intimidade está nos encontros agendados semanalmente com uma prostituta.

É, eu concordo, é humilhante. Mas talvez seja um bom ponto para começar de novo. Talvez seja isso que eu tenha de aprender a aceitar. Começar do nada. Com nada. Não com nada, mas…Com nada. Sem cartas, sem armas, sem propriedade, sem direitos, sem dignidade..

O rompimento brusco de um dos elementos da rotina fará com que o personagem central tenha comportamentos que ele mesmo condena, mas insiste e o faz repetidamente sem conseguir parar ou ampliar o cenário acabando por comprometer toda a sua mediocridade e problematizando o vazio de todo um percurso profissional: o professor envolve-se amorosamente com uma aluna num relacionamento que chamaria de abusivo e o desdobramento dos acontecimentos vão esvaecendo com a segurança daquele mundinho e tudo ao redor desaba rapidamente sem que haja uma reação, justificativa ou reconhecimento.

Como alternativa ou válvula de escape Lurie segue para o interior do país com o propósito de ficar com a filha que, para se ter uma noção do vínculo afetivo, não o chama de pai. Lucy leva uma vida bucólica em uma fazenda e sua desonra virá a partir de um acontecimento dramático que problematiza contexto histórico pós-apartheid, a questão de gênero, orientação sexual e a opção pelo silêncio em detrimento da denúncia de algo tão bárbaro que, como se não bastasse, foi presenciado pelo pai a quem pede para que esqueça, não denuncie ou tenha qualquer ato vingativo num exercício de resignação impressionante.

Acho que já é tarde demais para mim. Eu sou apena sum velho prisioneiro cumprindo sua pena. Mas você pode ir em frente. Está indo muito bem.

Na fazenda, além dos afazeres cotidianos ele vai, numa espiral de adaptação interessantíssimo e sem aparente conflito entre o trabalho intelectual e o braçal, trabalhar num local que realiza sacrifício de animais velhos ou abandonados e fará paralelos a respeito da velhice, doença e a solidão em nossa sociedade. Qual o distanciamento necessário para um trabalho assim? E quando você pensar em redenção, volte duas casas!

O título original “Disgrace” denota com maior intensidade e força o contado no livro que, com a característica de coesão e secura no desenvolvimento dos acontecimentos, me fascinaram mostrando que definitivamente não são necessários rodeios quando se sabe onde quer chegar e o impacto a ser provocado. A condição humana está ali, não há muito o que possa ser feito e é algo angustiante quando pensamos na vocação pelo “ser mais” do indivíduo.

Vai ficando cada vez mais difícil, Bev Shaw lhe disse uma vez. Mais difícil, mas mais fácil também. A gente se acostuma com as coisas ficando mais difíceis; a gente acaba não se assustando mais quando o que era o mais difícil do difícil fica ainda mais difícil.

Até então não tinha lido nada de John Maxwell Coetzee e a referência inicial foi sim o prêmio Nobel de Literatura e sim, o autor está em conformidade com o que se diz e espera de grandes escritores; a forma cuidadosa da escrita e o descortinar da obra foi, apesar da dureza e dificuldade de alguns temas, realmente significativa. Se está pensando numa leitura que provoque inquietação e desassossego, Desonra é uma sugestão na medida.