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Resenha: O Leitor do Trem das 6h27 – Jean-Paul Didierlaurent

Editora: Intrínseca
Autor: Jean-Paul Didierlaurent
ISBN: 9788580577914
Edição: 1
Número de páginas: 176
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos
Compre: Amazon

Operário discreto de uma usina que destrói encalhe de livros, Guylain Vignolles é um solteiro na casa dos trinta anos que leva uma vida monótona e solitária. Todos os dias, esse amante das palavras salva algumas páginas dos dentes de metal da ameaçadora máquina que opera.
A cada trajeto até o trabalho, ele lê no trem das 6h27 os trechos que escaparam do triturador na véspera. Um dia, Guylain encontra textos de um misterioso desconhecido que vão fazê-lo buscar cores diferentes para seu mundo e escrever uma nova história para sua vida.
Com delicadeza e comicidade, Jean-Paul Didierlaurent revela um universo singular, pleno de amor e poesia, em que os personagens mais banais são seres extraordinários e a literatura remedia a monotonia cotidiana.

Minhas impressões

Comecei a ler O Leitor do Trem das 6h27 sem nenhuma referência da obra ou expectativas além da curiosidade pela proposta imagética provocada pelo título e confesso que foi uma surpresa boa! Livro curtinho, de leitura rápida e envolvente.

Somos apresentados a Guylain Vignolles, pessoa comum, introspectiva, vivendo um dia de cada vez, sem grandes expectativas, sonhos ou projetos de futuro. Não parece de todo infeliz, apenas acomodado com a vida medíocre que leva. Os dias se repetem sem grandes novidades, mas é curioso saber que diariamente ele, durante o percurso para o trabalho no trem das 6h27, lê em voz alta trechos aleatórios sob os olhares curiosos e atônitos dos demais passageiros.

Nunca ia embora antes de explicar a Giuseppe que era preciso resistir, que a esperança não tinha morrido, que o tempo agiria em relação aos livros do mesmo modo que o gelo que encobre as pedras, e que mais cedo ou mais tarde eles acabariam reaparecendo.

Lançar holofotes em alguém solitário é interessante porque na maioria das vezes podemos descobrir universos incríveis, desafiadores e romper com o senso comum do “esquisito sem sentido”. Vignolles vive sozinho em seu apartamento cuidando apenas de um peixe, com vínculos afetivos e sociais singelos e marcados.

Fica impossível não lembrar daquelas figuras curiosas com quem convivemos no transporte público da cidade, naquela cumplicidade que só quem repete trens, ônibus e horários pode saber e ter. Qual seria nossa estranheza e fascínio diante de algo do tipo, alguém que religiosamente inicia uma leitura aleatória e quinze minutos após a encerra, pois chegou a parada, sem continuar no dia seguinte?

Uma vez por ano no equinócio de primavera, eu reconto. Assim, só pra ver, comprovar que nada jamais muda. Nesse momento do ano tão particular em que a noite e o dia compartilham o tempo em partes iguais, eu reconto, tendo no íntimo a ideia ridícula de que talvez, sim, um dia talvez até uma coisa a princípio tão imutável quanto a quantidade de cerâmicas que reveste meus domínios do piso ao teto possa mudar.

Refletir sobre o valor do trabalho e a satisfação obtida na tarefa também é algo que pode ser estimulado durante a leitura. A relação empresa/trabalhador é dura, sem desculpas, sem sossego e de um cinza concreto. Para um amante dos livros e da leitura não existe sentido em destruir obras não vendidas ou sobras de mercado, pensamos rapidamente em várias saídas para a questão que não seja a destruição em massa.

O personagem principal subverte a dureza da tarefa de eliminar as obras resgatando dos dentes da máquina trituradora algumas folhas da versão aniquilada, além do risco de acidente de trabalho, da repreensão do “sistema” existe aquela sensação compartilhada com o leitor de estar fazendo algo que provoca os demais oferecendo transgressão, romance, conhecimento e sensibilidade.

Assim que atravessou as portas automáticas, o homem abandonou o passo firme que o levara até ali. Havia nele um desejo de fazer o instante durar, de adiar a hora do confronto com essa realidade que mais uma vez poderia destruir todas as suas esperanças.

De maneira não consciente e linear, o livro trouxe como memória o romance distópico Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1910-2012) em que no futuro os livros são proibidos e o trabalho dos bombeiros é o de queimá-los.

Seguimos acompanhando a rotina e entramos na ausência de acontecimentos até que algo surpreende e, ainda que ele continue a fazer tudo exatamente como antes, somos levados a novos horizontes e possibilidades oferecendo luz ao fatídico cotidiano.

Existe uma delicadeza na forma escrita, na cadência lenta da primeira fase da obra e na ansiedade pelo desfecho que, antes de nos satisfazer, entra em um labirinto divertido. Cada um, com seu percurso singular, fará observação necessária sobre a história e sua permanência na memória. Meu voto é pelo atrevimento na leitura apostando no milagre de cada dia.