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Resenha: Caminhos Cruzados – Erico Verissimo

Editora: Companhia das Letras
Autor: Erico Verissimo
ISBN: 9788535926712
Edição: 1
Número de páginas: 368
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos
Compre: Amazon

Publicado em 1935, Caminhos cruzados é um romance urbano e de aguda observação social. Tendo como cenário uma Porto Alegre onde já se confrontavam modernização e miséria, afluência e desencanto, o texto de Erico Verissimo chocou os leitores de sua época pela exposição realista do descompasso brasileiro entre as diversas camadas sociais — e ainda hoje reverbera graças à abordagem narrativa adotada pelo autor. Influenciado pela técnica de intrigas entrelaçadas e pela ausência de personagem principal da ficção e sem narrar acontecimentos de vulto, o autor expõe o nervo da fragilidade humana num painel vivo e eletrizante de um tempo e de um país em transformação.

Minhas impressões

Tenho um profundo fascínio pelo escritor Erico Verissimo, nas livrarias flerto há anos com a série “O Tempo e o Vento” e venho adiando sua leitura como quem adia, sem motivo aparente, aquela viagem dos sonhos. O encantamento tem como histórico a experiência que tive com “Olhai os Lírios do Campo” que está entre os melhores e mais tristes de minha memória leitora.

Enquanto não encaro “a viagem” optei por ler Caminhos Cruzados que é um livro em que precisamos de atenção, pois como o nome já diz, teremos o entrecruzamento de histórias de vida em que os mais diversos sentimentos serão mostrados como que em uma novela.

Dizem que a melhor forma de ver e entender algo é a partir de certo distanciamento. Quão longe precisamos ir para termos um olhar não tão envolvido com o que acontece no cotidiano? Como numa obra impressionista, em que precisamos dar um passo para trás para enxergar melhor, o livro sugere surpreendentemente algo muito além que alguns passos.

A história de Caminhos Cruzados é narrada na cidade de Porto Alegre entre uma manhã de sábado e a noite da quarta-feira, cinco dias em que com riqueza de detalhes vamos conhecendo e ficando íntimos de algumas situações vividas de maneira entrelaçada por um determinado grupo de pessoas. A capital gaúcha mostra seu charme, seu clima e reconhecemos alguns pontos geográficos e características apaixonantes.

O relógio continua a tilintar. Cinco segundos. O milagre acontece: o infinito é devorado pelo finito: o mundo ilimitado do sonho desaparece dentro do mundinho de quatro paredes que o despertador enche com sua voz metálica.

A teia de relações vai aparecendo e logo percebemos a ausência de uma personagem central e tudo bem porque observamos de um lugar muito confortável o descortinar da intimidade de cada um, suas inseguranças, anseios, potencialidades, esquisitices e o que for.

Quantas e quantas vezes questionamos os abismos das diferenças sociais? Os choques em observarmos e sentirmos o baque de um mundo em que poucos tem muito e muitos tem pouco ou quase nada, estão presentes na história. A desigualdade e a injustiça escancaradas aparecem no livro de maneira muito dolorida, a dor da fome, a dor da morte que se aproxima e tudo tão sem esperança e aparentemente sem saída que seus personagens caem numa resignação melancólica.

Apesar de ter sido escrito em 1935 as temáticas são extremamente atuais, temos desencanto, desamor, amor não correspondido, traição, triângulo amoroso, apatia, flertes homossexuais, o tabu da virgindade, fuga da realidade, aprisionamento ao que foi vivido no passado, sentimento de perda em relação aos filhos, o comportamento dos novos-ricos, inversão de papéis e tantos outros.

Mas nesse instante só uma coisa importa: a quantidade. Todas as outras necessidades empalidecem, recuam para segundo plano. Lá fora a cidade vive, os bondes e os autos rolam, os homens caminham e lutam, os dramas acontecem, há angústias escondidas, gritos de dor e de contentamento, os poetas fazem versos à lua, os vagabundos passeiam pelos jardins, por onde vagam homens sem trabalho e sem rumo, nascem gênios e imbecis.

A literatura também está presente na vida de dois personagens que, como forma de subverter ao presente problemático e duro, buscam as aventuras, segurança e a magia no universo literário. Tão bonito, tão triste.

Durante os dias em que a história transcorre acompanhamos os cafés, almoços, jantares e festas vividos, vamos conhecendo o professor Clarimundo que é uma figuraça, portador de transtorno obsessivo compulsivo e de uma solidão curiosa, o rico Honorato Madeira, sua mulher Virginia e o filho Noel um rapaz de grande sensibilidade apaixonado por Fernanda que é sua amiga desde a infância; Fernanda é uma jovem pratica, objetiva e acaba assumindo a responsabilidade na família, temos Salu que não trabalha ou estuda e distribui charme nas festas e conquistas, Chinita é a deslumbrada filha de Zé Maria ganhador da loteria cuja mulher, Maria Luísa, só pensa em como era feliz na pobreza.

Mas Noel está ouvindo mentalmente Debussy. Fernanda não ouve nem Noel, nem Verdi, nem Debussy: está vendo com os olhos interiores um dia indiscutível em que o esforço dos homens de boa vontade, sem violência nem fanatismo, possa igualar as diferenças sociais.

Seguimos com o pobre e desempregado João Benévolo que é apaixonado pelos Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas, casado com Laurentina e pai de Napoleão; temos o adolescente Pedro apaixonado pela prostituta Cacilda e chegamos ao renomado empresário Teotônio Leiria casado com a nobre religiosa senhora Dodó. Senhora Dodó é a caridosa que, muito além de contribuir com a diminuição da pobreza, almeja ser reconhecida de maneira midiática pelo bem que faz.

A obra é surpreendente pela fluidez no correr dos olhos, por ser realista, pelo distanciamento histórico e ainda na reflexão da espiral da história em que as coisas se repetem e pouco mudam. Vale muito e tem um desfecho adorável.