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Resenha: Ainda estou aqui – Marcelo Rubens Paiva

Editora: Alfaguara
Autor: Marcelo Rubens Paiva
ISBN: 9788579624162
Edição: 1
Número de páginas: 296
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos

Eunice Paiva é uma mulher de muitas vidas. Casada com o deputado Rubens Paiva, esteve ao seu lado quando foi cassado e exilado, em 1964. Mãe de cinco filhos, passou a criá-los sozinha quando, em 1971, o marido foi preso por agentes da ditadura, a seguir torturado e morto. Em meio à dor, ela se reinventou. Voltou a estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos indígenas. Nunca chorou na frente das câmeras. Ao falar de Eunice, e de sua última luta, desta vez contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva fala também da memória, da infância e do filho. E mergulha num momento negro da história recente brasileira para contar – e tentar entender – o que de fato ocorreu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.

Minhas Impressões

Sou fã de Marcelo Rubens Paiva para muito além de “Feliz Ano Velho”. Gosto especialmente de “Blecaute”, me vi em muitas situações de “A Mentira que as Mulheres Contam”, suas crônicas no Estado são envolventes, inteligentes e, acima de tudo, porque ele é Corinthians.

Em “Ainda Estou Aqui” esperava uma autobiografia atualizada, pois como é comumente sabido, a história de Marcelo está ligada à História do Brasil e muito se desvelou nos últimos tempos quando, por exemplo, a Comissão Nacional da Verdade declarou que seu pai Rubens Paiva foi torturado e morto durante a ditadura militar.

A expectativa era a de encontrar maior detalhamento do vivido no golpe militar e do desaparecimento do deputado, mas o livro fala de muito mais: resgata memória familiar, fala de um tempo da sociedade em que os valores eram outros, de uma infância bucólica, de uma adolescência em meio a um turbilhão de acontecimentos e principalmente de Eunice Paiva, a mãe do escritor.

Citando o verso da canção de David Bowie ‘Can you hear me, Major Tom? Can you hear me, Major Tom’, Marcelo pontua: Major Tom, às escuras, num voo às cegas, na porta da sua nave, que parece uma lata fina. Planet Earth is blue, and there’s I can do. Me pergunto se esse é um pensamento conformista, de quem não acredita em ações transformadoras ou nas possibilidades de o homem, um ser político, fazer a história, em atitudes que um dia chamou de revolução, ou se, em certos casos, a Terra é azul, é muito maior do que nossa insignificância, e não há nada que se possa fazer.

Contou em primeira pessoa e de maneira cativante as peripécias da meninice, as paixões platônicas, as recordações dos tempos de escola em São Paulo, fala das mudanças da família, de como se adaptou ou observou tais deslocamentos e de como foram os longos anos de interrogação e investigação sobre o que teria acontecido com o pai.

Sabia que a mãe do autor era forte, lutadora, obstinada e determinada na busca pela manutenção da família e da verdade diante do desaparecimento do marido, mas fiquei surpresa com a notoriedade profissional que conquistou diante da militância pelos direitos dos indígenas. Segundo Marcelo, ela teria atuado mais contra a ditadura do que o pai e nunca chorou ou permitiu que os membros da família chorassem diante das câmeras.

Toda a parte do relato que trata do período da ditadura militar merece uma atenção especial, está tudo lá, a tirania do golpe, as táticas militares, o sofrimento, a alienação, a luta, a tortura e a covardia das prisões e demais atitudes extremamente perversas do período.

A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vitima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.

Marcelo deixa uma marca poética quando fala da mãe no passado, apesar dela estar viva. Eunice sofre de Alzheimer e as dificuldades do avanço da doença são contatas no livro de maneira emocionante, a proximidade parece recuperar uma ausência no relacionamento entre os dois.

O livro é belo, tocante e vale como memória autobiográfica e como lembrança permanente de um período sombrio da nossa história.