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Resenha: Do amor e outros demônios – Gabriel Garcia Márquez

Editora: Record
Autor: Gabriel García Marquez
ASIN: 9788501042286
Edição: 1
Número de páginas: 192
Acabamento: Brochura
Classificação EDS: 100 de 100 pontos
Compre: Amazon

Em 1949, o então jovem repórter Gabriel García Márquez acompanha a remoção das criptas do convento histórico de Santa Clara, e o túmulo de uma menina o faz lembrar as lendas contadas por sua avó. Segundo ela, no Caribe, havia uma marquesinha que tinha uma “cabeleira que se arrastava como a cauda de um vestido de noiva”. Venerada por seus milagres, ela foi mordida por um cachorro e morreu de raiva. Seria ela ali enterrada? García Márquez conta a história da filha única de um marquês, criada no convívio de escravos e orixás, e um padre incumbido de exorcizar os demônios que se acredita terem possuído a pequena, cujos cabelos só seriam cortados em seu casamento.

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Minhas Impressões

Ler Gabriel García Márquez é sempre um acontecimento e algo feito com reverência, admiração e imersão numa escrita realizada com força que provoca em mim um fascínio inexplicável por aquele mundo fantástico que ele criou.

Há muitos anos, depois de uma série de tentativas frustradas, fui completamente arrebatada pelos Buendia de Cem Anos de Solidão e hoje o cenário narrativo de toda e qualquer história do autor é, na verdade, a boa e velha Macondo. Para os demais leitores provavelmente não deve ser assim, cada obra deve ter seu território e tudo o mais, mas pra mim elas acontecem quase que simultaneamente “por ali”.

Em meu imaginário tudo tem o mesmo cenário, as aventuras e desventuras descritas nos livros do autor ocorrem na mesmíssima região. Consigo pensar as grandes fazendas, as casas, os vilarejos, as florestas, as estradas e os mosteiros exatamente da mesma forma com a alteração apenas dos personagens e enredos, como se a cem quilômetros do mar que trouxe “O Afogado mais bonito do mundo” estivesse o lugar em que “O Amor nos tempos ao cólera” se passou.

Tudo isso para chegarmos ao belo e curioso “Do Amor e Outros Demônios”, história que é narrada de maneira belíssima, com identidade marcante e que tem um poder surpreendente. O título é aquela provocação interessante, que amplia a reflexão sobre a quebra do significado do Amor como divino e coloca-o de maneira dúbia como obra do “coisa ruim”.

No início da carreira como repórter, Garcia Marquez foi encaminhado para acompanhar a remoção das criptas de um antigo convento da cidade de Santa Clara e quando o túmulo de uma jovem é aberto “a cabeleira que se arrastava como a cauda de um vestido de noiva”, o fez relembrar de uma das histórias de sua avó sobre uma marquesa que fazia milagres pelo Caribe e é sobre ela, Sierva Maria de Todos Los Angeles, que o livro vai falar.

– Não é que a menina seja negação para tudo, o que há é que ela não é deste mundo.
Bernarda quisera aplacar os seus rancores, mas logo ficou evidente que a culpa não era nem de uma ou de outra, mas da natureza de ambas. Vivia em pânico desde que acreditou descobrir na filha certa condição fantasmal. Tremia só de pensar no instante em que olhava para trás e dava com os olhos inescrutáveis da criança lânguida com seus tules vaporosos e a cabeleira silvestre que já lhe batia pelos joelhos.

O parte inicial do livro apresenta a menina Sierva Maria e toda a solidão e mistério que acompanham sua existência, ficamos em dúvida sobre os motivos pelos quais não interage com as pessoas e seu fascínio, reconhecimento e conforto na proximidade com os rituais africanos.

Tomamos conhecimento dos adultos da história e suas respectivas solidões, falta de amor ou tentativas tardias de mudança; o pai Marquês de Casalduero mostra cuidado e atenção para com a filha um pouco tarde e apesar das ressalvas, cede ao médico que diante de episódios que envolvem vômitos, objetos que se movem e outras situações duvidosas; a mãe, Bernarda Cabrera, perdeu-se em si mesma e teme verdadeiramente o mistério da filha num distanciamento escabroso de si, da família ou das tentativas de ser o que se é.

O comportamento da menina vai suscitando questões e observações, inclusive médicas, até que se chega a conclusão de que está possuída e que é preciso intervenção imediata. Uma vez “descoberta” a possessão demoníaca, entra em cena o padre Cayetano Delaura religioso inteligente, letrado e bastante culto.

O convento onde Sierva Maria é colocada tem descrição horripilante e as freiras reforçam todas as intolerâncias que oprimiram e ainda oprimem os que sentem, pensam e agem de maneira diferente.

Delaura, depois de tentar salvar a menina do demônio, acaba sucumbindo ao poder do amor, numa história com dose de mistério, encantamento e ardor. Trata-se de um amor perturbado, inquieto e bastante diferente do que esperamos e que acaba inquietando o leitor acostumado a obras mais lineares.

E sem lhe dar tempo ao pânico, libertou-se da matéria turva que o impedia de viver. Confessou que não passava um instante sem pensar nela, que tudo o que bebia e comia tinha gosto dela, que a vida era ela a toda hora e em toda parte, como só Deus tinha o direito e o poder de ser, e que o gozo supremo de seu coração seria morrer com ela. Continuou falando sem a fitar, com a mesma fluidez e o mesmo calor com que recitava, até que teve a impressão de que Sierva Maria tinha dormido. Mas ela estava atenta, fixos nele os seus olhos de corça assustada. Apenas se atreveu a perguntar:
– E agora?
– Agora nada – disse ele. – Basta que saibas.

Temos ainda outras tantas nuances em que podemos pensar sobre a religiosidade, as hierarquias, a decadência social e de si, os papéis que se assume, o fanatismo e outras tantas questões que não apontamos aqui para não entregar ainda mais a história.

Ainda não li toda a obra do grande Gabo e a presente não é a melhor das que já conheço, mas o livro vale muito a aventura!